- Já olhaste para o sol?
- Já. E senti o calor e admirei a luz. E a metade de mim olhou por tempo demais, e nada mais viu.
- Já paraste à noite, em um lugar escuro para olhar o céu?
- Já. E as estrelas me maravilharam com seu brilho e sua beleza. E a lua despertou em mim a ternura. E a metade de mim lembrou que, apesar de tanto brilharem, elas já não estão mais lá e que a lua é rocha sem vida.
- Da água límpida já provaste?
- Já. E enquanto ela descia por minha garganta e escorria pelos meus dedos ela me refrescou. E a metade de mim quis ir mais fundo e a água não era mais refrescante, mas sufocante.
- E já fechaste os olhos e viste a escuridão?
- Já. E sem nada ver senti a grandeza de minha própria vastidão. E a metade de mim mostrou os fantasmas que habitam a escuridão e tive medo.
- Amaste alguma vez?
- Já. E a felicidade da entrega foi tanta que de mim esqueci. E a metade de mim já sofreu e chorou quando o amor acabou.
- E sobre a morte, já pensaste?
- Já. E isso não me preocupou, pois todas as coisas tem um fim. E a metade de mim lamentou tudo o que ficaria sem fim após seu fim.
-E o nascer e o cair do dia, presenciaste?
- Já. E como são mágicos aqueles instantes em que noite e dia não mais se diferenciam. E a metade de mim constatou que nada se pode fazer contra o constante fluir do tempo.
-E o silêncio, escutaste?
- Já. E instantes de tranquilidade e paz foi o que o som me trouxe. E a metade de mim só pode sentir a solidão.
-E sonhar?
-Sonhar. Já. E os sonhos alimentaram as esperanças futuras. E a metade de mim disse que sonhos são para tolos, não mais que ilusões.
- E alguma vez já olhaste para si?
- Já. E então vi que eu sou eu e a metade de mim.
Friday, May 21, 2010
Friday, April 07, 2006
I.
A poça transbordou. A água escorreu pelo leve desnível do lado esquerdo. O pequeno canal que se formou desaguou no meu pé esquerdo. O primeiro evento extraordinário em tempos. Não. Minto. O primeiro evento extraordinário foram as treze gotas a mais. Mil trezentos e oitenta e cinco gotas. Deve estar chovendo lá fora. Aqui chove todos os dias. Todos os dias exatamente mil trezentos e setenta e duas gotas sobre a minha poça. Se a poça fosse mais profunda daria um jeito de conseguir um peixe. Realmente extraordinário. Treze gotas a mais. Deve star chovendo lá fora. Aqui chove todos os dias. Mil trezentos e setenta e duas gotas.
II.
Se um dia me pedirem posso construir um canto igual a esse. Tempos olhando para esse canto. Sei como cada pedra é encaixada na outra. Poderia montar e desmontar o canto. Abrir e fechar a parede. Já fiz isso diversas vezes. Mas só na minha cabeça. Se um dia me pedirem posso construir um igual. Se um dia me pedirem. Senão só na minha cabeça.
III.
Meu céu não tem estrelas. Não tem nuvens. Sol ou lua. Dia ou noite. Apenas intervalos. Quando fecho os olhos e quando os abro novamente. O mesmo céu. Sem estrelas.
IV.
Hoje elas não apareceram. Agnes e Agatha. Não é a primeira vez que elas não aparecem. Mas confesso que me sinto mais só quando elas não vem. Confesso que fico esperando. Mesmo sabendo que as vezes elas não vão aparecer. Como hoje. A primeira vez que apareceram não nos entendemos. As via como invasoras. Até pensei em matá-las. Mas não. Deixei-as ficar e deixei-as ir embora. E elas voltaram. E voltaram. E a situação foi se amenizando. Começamos a nos entender. Hoje elas são minhas únicas companhias reais além do musgo nas paredes. Mas hoje não vieram. O dia foi mais longo. Agnes e Agatha. Não sei porque as chamei assim. Nomes femininos. Não sei distinguir o sexo das aranhas.
V.
Tentava manter a conta do tempo. Seguir o andar de dias e noites. Meses. Talvez anos. Mas é difícil quando se tem q fazer isso contando as horas mentalmente. Ou procurando resquícios de luz por alguma fresta. Agora eu determino o que é dia e o que é noite. Aleatoriamente.
VI.
Campos verdes. Uma brisa fresca sopra. Os pelos do meu corpo se arrepiam. Piso de pés descalços na grama macia e úmida. O sol é quente e seus raios penetram as nuvens cinzas que a pouco cessaram de chover. Ainda tenho a pele úmida. Respiro fundo. E o cheiro é podre. Mofo. É assim que acordo. É assim que me são roubados os campos verdes. O lugar para onde fujo quando fecho os olhos. Quando quase durmo. Perdido entre dias sem sol e noites sem lua. Voltado para o canto. Até a minha poça fede. E os pingos caem. Fecho os olhos. Mas os campos não voltam.
VII.
O tédio consome até meus pensamentos. Parados. Estáticos. Imóveis. Até meus pensamentos são cansados. Disseram uma vez que somos sempre livres nos pensamentos. Grande bobagem. Até minhas idéias são encarceradas. Presas. Limitadas pelas paredes de uma mente suprimida. Será dia lá fora? Ou até o tempo foi consumido pelo meu tédio? O um tempo foi.
VIII.
A necessidade desesperada do outro. Nunca pensei que fosse sentir de maneira tão intensa. Mas não há outro. Apenas outras paredes. Sempre as mesmas paredes. Intimas. Elas que devolvem o eco de minhas palavras suprindo-me um pouco dessa ânsia. Elas que me colocam frente a frente com minha própria repetição. Meu outro sou eu.
IX.
Hoje é meu aniversário. Assim como o foi ontem. E como o será daqui a uma semana. Ou daqui a uma semana. Os anos passam mais rápido assim. Tenho aqui minha própria órbita em torno de um sol único (imaginário). Posso acelerar ou retardar o tempo. E não é esse um grande poder. Grande poder. De nada adianta. Lá fora tudo continua como sempre foi. E aqui tudo continuará como sempre é. Pois tudo é sempre igual. Não importa se amanhã decido comemorar mais um ano em um dia. Grande poder. Se pudesse apenas acelerar o tempo em direção ao fim. Ou retrocede-lo até o começo de tudo. Não. Acelerando ou retrocedendo vivo em um permanente Agora. Sempre igual. Nem minhas ilusões me bastam mais. Esmagadas pela perene realidade desse Agora que insiste em ficar.
Tuesday, December 06, 2005
Ecos
I.
NA SALA. Sentados um de frente para o outro.
ELA: Ainda ouço. Ele continua falando. Até quando continuarei ouvindo? Até quando ele continuará falando?
ELE: Ela ainda escuta. Será que presta atenção? Será que o que falo ainda faz algum sentido? Para ela? Para mim?
ELA: Ele sempre falou mais que eu. Mas será que algum dia me disse alguma coisa? Ou será que meus silêncios foram mais expressivos?
ELE: Se eu calar, o que restará? Apenas seus silêncios. O peso do silêncio. Muito maior que o de minhas palavras.
ELA: Nunca soube como dizer. O que falar. Sempre escutei. A voz dele. As palavras dele. E só. Os únicos sons que vem dele. Se ele calar, o que restará?
A chaleira chia na cozinha.
II.
NA COZINHA. Ela em pé, com a chaleira na mão, prepara o café. Ele sentado à mesa.
ELE: Nunca falou muito. Tudo fala por ela. E esses são seus sons. O chiar da chaleira no fogo. A água caindo sobre o pó. Sua respiração, tranqüila. Será que ela também me escuta assim? O beijo, os lábios úmidos e quentes. A pele que se arrepia ao toque.
ELA: Meu olhar fala. Meu corpo expressa. Será que ele ainda entende? Seu olhar alguma vez compreendeu o meu? E seu corpo? Alguma vez ouviu? Quando me toca, eu grito. E ele silencia.
III.
NO QUARTO. Ambos na cama.
ELA: Será que sempre nos entenderemos assim? Longe de todos os outros. Longe de tudo. Perdidos em nós mesmos. Será?
ELE: Agora é o momento em que silencio. Em que me abandono em sua polifonia. É o momento em que escuto, só, à sinfonia dela. É quando, penso, realmente entendemos um ao outro.
IV.
NA BANHEIRA. Ambos dentro d´água, de costas um para o outro.
ELE: Quando criança mergulhava a cabeça na água e gritava. Minha voz distorcida. Dizia muitas coisas. Frases enormes. Mas o que escutava eram coisas completamente diversas do que dizia. E ela? Escuta o que digo, ou o som que se propaga distorcido na água?
ELA: Quando criança mergulhava a cabeça na água. Segurava a respiração para não soltar nem uma bolhinha. O silêncio me deixava a sós comigo mesma. Às vezes é assim que me sinto. Submersa no silêncio, prendendo a respiração. Mas ele está ao meu lado.
V.
NA SALA DE JANTAR, á mesa. Eles comem.
ELA: Como por necessidade. Mas as refeições se tornam um hábito. Amo por necessidade. Será que um dia o farei por hábito?
ELE: Não gosto de ervilhas. Desde pequeno nunca gostei. Sempre me disseram que faziam bem para a saúde. Então comia. Quieto. Sempre dei muita importância ao que os outros me diziam. Será que os outros dão tal valor ao que digo?
ELA: Hábito. “Olá”. “Como vai?” “Tudo bem com você?” Falas decoradas e automáticas. O pouco que falo também falo por hábito. O muito que digo nem todos escutam. Para ele chega a ser mais que um hábito. Falar é um vício.
ELE: Tento calar. Mas o silêncio me desmancha. Deixa marcas como gotas corrosivas. No silêncio estou só. Abandonado até por mim mesmo. E a solidão me destrói.
VI.
NA CAMA. Deitados lado a lado.
ELA: Enfim estamos sós. Estou só.
ELE: Odeio ficar só. Sozinho, olhando para o teto. Para o vazio. Para o nada. Estou só.
ELA: Estou só. Estou bem. Por que fazemos tanta questão de estarmos com alguém?
ELE: Só. Não consigo. Preciso estar com alguém. Por que isso?
ELA: Sempre cercados de outros, de outras, de muitos. Sempre acompanhados. Por que, se somos sós?
ELE: Por que ficamos sós se podemos estar sempre cercados, ocupados, atarefados?
ELA: Nesta hora estou só. Agora. E penso o porquê?
ELE: Porque precisamos de ecos. É tudo o que queremos.
ELA: Ecos. Ecos de nós mesmos.
Felicidade
- Você é feliz?
A pergunta soava descabida. A chuva caia forte e fria. Fria. Assim como o cano da arma que lhe pressionava a nuca. Era incomoda aquela pressão. Porém mais incomoda era a chuva. A roupa estava colada em seu corpo. Com certeza ficaria gripado. Gripado? Provavelmente nunca ficaria gripado novamente.
* * *
Após desligar o telefone fora para o banho. Ela havia concordado em vê-lo mais uma vez. Talvez voltassem a se entender. Talvez não. A discussão tinha sido séria. Não queria vê-lo nunca mais. Nem pintado de ouro. Mesmo assim resolveu ligar. No fundo não podia viver sem ela. Estava decidido a acertar as coisas. Começar novamente. Ao menos tentar.
Tomou um longo banho. A água, então, era quente. Agradável. Lavava-se para vê-la. Limpo de seus pecados. Vestiu-se com uma roupa elegante mas casual. Sabia que ela gostava daquela blusa. Ela tinha lhe dado em um aniversário. Sentia-se bonito. Confiante. Hoje iria compensar seus erros. Estava ansioso também. Ela parecia disposta a conversar. Mas qual seria sua reação? Ele permanecia com a dúvida.
Entrou no carro. Não ligou o rádio. Talvez até o tivesse ligado. Contudo, a ansiedade não o permitia. Saiu da garagem e tomou seu rumo. O rumo da felicidade? Era o que ele esperava. O sinal ficou vermelho. Ele parou. Seus pensamentos foram subitamente interrompidos. Uma nova sensação o dominou. Dor. Havia sido atingido na cabeça. Um pouco acima do olho esquerdo. Com muita força.
Por entre o olho inchado e o sangue viu a mão que o empurrava para o lado. O homem entrou no carro e partiu. Ela já o avisara para andar com a janela fechada. Não a escutara. Levantou a cabeça. Mais uma vez foi golpeado. Porém com mais força. Apagou. Ficou perdido em memórias e devaneios.
Acordou. Começara a chover. Água e sangue escorriam para sua boca. Estava deitado no chão. Não sabia onde. Sentia um peso sobre suas costas que o impediam de se mover. Sentia também uma pressão fria em sua nuca. O homem estava sobre ele com uma arma.
- Responde! Você é feliz?
Se era feliz? A pergunta era mesmo descabida.
Não respondeu. Ficou em silêncio. Qual seria a medida da felicidade? Será que se arrependeria de algo? Será que era feliz? Seria feliz? Um estouro. A nuca esquentou repentinamente. E ele não sentiu mais nada.
* * *
Ela esperou-o por uma hora. Por uma hora ficou sentada à janela. Observava a chuva que começara a cair. Pensava no que diria a ele. Uma hora. Ela levantou-se e foi embora. Teria sido feliz com ele? Não sabia. Jamais saberia.
Thursday, September 22, 2005
Um dia
Ela não concordaria. Nunca. A conhecia melhor que ela mesma. Já tentara antes, mas as palavras sempre faltaram. Então ficava observando-a. Somente olhando para aquela que queria. Olhando porém disfarçando do olhar alheio o que lhe ia por dentro. Pensava se algum dia teria coragem. Pensava para que era necessário coragem se tantas vezes já vislumbrara aquela cena. Pensara que tinha medo. Medo do que? Medo de um não, medo da não retribuição, medo de perder o pouco que tinha a seu lado por querer mais.
Queria ter coragem. Apostar em que daria certo? Não. Deixar-se levar, não sem medo, mas sem esperanças ou expectativas. Simplesmente entregar-se. Abdicar da certeza comodista da hesitação e lançar-se para o terreno da incerteza. Querer mais, além do pouco que tinha? Mais do que isso. Querer apenas que ela soubesse. Nada mais.
Estava resoluto. Seria assim. Atiraria aos ventos a estabilidade da distância. Observava-a sob uma nova determinação. Levantaria. Aproximaria-se dela. O sangue correndo mais rápido. Um leve tremor nas mãos. Um pouco de suor. A respiração pesada. Ela vê que se aproxima. Olha-o nos olhos e sorri, como de costume. Ele desvia timidamente o olhar do dela. O abraço amigo. O beijo carinhoso no rosto. O cheiro do perfume. O toque da pele macia. Os lábios. Os lábios. Aquele sorriso permanente. Redentor. Ele abre a boca. Quer falar. Seus lábios hesitantes.
- O que foi? – pergunta a voz melodiosa, sedosa.
O que foi? Sua resolução subitamente abalada. A vontade fragmentada por um sorriso. E o medo, velho companheiro, apontava de leve. O que foi? Será que ela corresponderia? O sorriso que tanto amava permaneceria? Ela ainda o olharia nos olhos?
- Fala...
Falaria. O resquício de determinação ainda restava. Não sucumbira. E se ela dissesse que não? Falaria a verdade. E se ele tivesse entendido tudo errado? Não importa. Tinha que falar. E se...?
- Eu...eu estava com saudades...
Um sorriso. Um toque carinhoso no rosto. Era a verdade. Cada minuto longe dela representava longos períodos. Tinha saudade. Só se tem saudade de quem se ama. Um dia ela entenderia. Não estava preparado para ser privado daquele sorriso. Mesmo que isso fosse uma incerteza. Não estava preparado. Amava-a a cada olhar. A cada sorriso. Próximo mas a distância. Um dia ela entenderia.
Wednesday, September 14, 2005
Armário
Dias chuvosos sempre me põe a pensar. O pensamento é a miséria humana. Maldita qualidade que nos dá consciência de nossa mediocridade. E, pior, nos deixa elocubrando acerca dos pecados do próximo. Foi o pensamento que me colocou nesta situação. Dentro de um armário, espionando minha própria esposa. Nunca pensei que chegaria a tal ato degradante.
Não posso ver a chuva de dentro do armário. Só escuto seu barulho. Forte, ritimado. O ruído só aumenta meu nervosísmo. Chovia também quando meu amigo me contou que a vira saindo deste prédio acompanhada por um homem. Perguntei-lhe quem era o homem, mas ele disse que não conseguira identificá-lo. Prestava atenção em Fernanda e viu o homem só de relance. Que merda. Quem poderia ser o desgraçado?
Nunca esperei isto dela. Qualquer coisa. Menos a traição. O suor começa a escorrer por minha testa e começo a achar o armário apertado. Quanto tempo terá se passado? Não consigo ver o relógio. Será que eles vão demorar? Quero sair daqui. Quanto mais demora mais dúvidas. Por que ela faria isso? Será que não a satisfaço? Talvez não o suficiente. Ela ainda me ama?
A aliança pesa em meu dedo. Lixo. Inútil. Tento tirá-la de meu dedo, sem sucesso. Acho que minha mão inchou com o calor. Está muito quente aqui dentro. Seco o suor da testa quando escuto um barulho na porta do quarto. É ela. Ela entra no quarto toda molhada. Ela está com o vestido cinza que lhe dei de aniversário. O tecido molhado marcando as formas de seu corpo. Corpo que fora só meu. Ela era linda. Será que eu ainda a amo? Depois disso?
Ela está sozinha. Sem acender a luz, entra no banheiro do quarto e pega uma toalha. Tira o vestido e começa a secar seu corpo. Outro barulho na porta. Era verdade, então. Havia outro. Ele entra no quarto e abraça-a por trás, beijando-lhe o pescoço. É um desconhecido para mim.
O que fazer? Sair do armário e enfrentá-los? Xingá-los? Bater nela? Matar ele? O que eu vim fazer aqui afinal? Não sei. Sei que não posso ficar olhando isso. Fecho os olhos e choro. Não derramo lágrimas para não fazer barulho, mas choro por dentro. Recollho-me à penumbra do armário e concentro-me no som da chuva lá fora. Ela está mais forte agora. O céu derrama as lágrimas que não posso. Chora pelo que não pude. E o armário não me parece mais tão pequeno.
Tuesday, September 13, 2005
Silêncio
I.
- Espera. - exclamou, segurando o amigo pelo braço.
- Do que tens medo?
Não soube responder no exato instante em que a pergunta lhe foi formulada. Olhava fixamente para aquela porta fechada a sua frente. Prosseguir ou não? Seria difícil para ele olhar na cara do passado. Justamente este passado que ele lutara para esquecer. Luta em vão. Perdida. Era assim que se sentia. Derrotado.
- Anda. Vamos entrar.
- Só mais um pouco, por favor.
Apoiou-se na bengala. A bengala. Seu único sustento. Seu único apoio. Sem ela dificilmente se manteria em pé. E por causa dela desabou, derrotado, frente a seu passado. Contradições da existência, pensou. A vida é uma contradição. A perna manca lhe doía.
- Estas com medo de que?
Conhecia-o bem, este amigo. Sabia de tudo. Até de seu medo. Era seu único amigo.
- De pé, diante de um espelho, digo a mim mesmo, aterrorizado: quero ver nesse espelho com o que pareço quando meus olhos estão fechados.
- Que queres dizer?
- É Richter.
Silenciou novamente ao erguer os olhos para a porta. O peso da memória fazia-o apertar a bengala. O amigo abriu a porta. Não havia dado importância ao que tinha dito.
- Tenho medo de como ela vai olhar-me...
II.
Do canto da sala onde se encontrava, sentado ao velho sofá, podia ver a cidade pela janela. Levantou-se, aproximou-se da janela e olhou para fora. Quantas vezes repetira aquela ação. Levantar-se, caminhar até a janela, olhar a cidade, as ruas, os andarilhos. O ato era o mesmo, a cidade era a mesma, até o sofá era o mesmo. Ela, porém, não era.
Desviou sua atenção da paisagem ao ouvir passos perto da porta. Seriam eles? Já era hora. Quase não acreditou ao atender o telefonema daquele velho amigo. Aquele amigo, o único elo remanescente entre eles.
- Como está ele?
- Quer ver-te. Seria possível?
Era possível. Ela estava ali, a espera dele, como tantas outras vezes havia estado.
Só agora concordou em encontrá-lo. Só agora podia dizer que o ato era o mesmo, a cidade era a mesma, até o sofá era o mesmo, mas ela não era. Agora já sentia que até o local era diferente. Meras paredes de concreto, frias, inanimadas, mortas, de um branco pálido. A vida daquele apartamento se fora com ela.
Apesar desta aparente segurança, perguntou-se, ao ouvir os passos, se seria capaz de olhá-lo nos olhos novamente. Tanto tempo levou para enterrar os fantasmas, que se perguntava se eles não seriam exumados no momento em que ele entrasse por aquela porta. Respirou fundo. Afinal, o passado não lhe doía mais no peito como antigamente. Já há algum tempo dormia em paz.
O que será que ele queria, depois de tanto tempo? O amigo não havia lhe dito. Apenas marcaram o quando, sendo o onde já sabido por ambos.
Virou-se para a porta ao ouvir o som da fechadura se abrindo.
III.
Abrira a porta como fazia sempre. Entrou e tirou o casaco. Deixou-o cair no chão. Pouco se importava com o casaco. Lá estava ela. A sua espera. Deitada no sofá. Somente aquele robe preto de seda cobria-lhe o corpo. Ela ficava linda de preto. A cor tornava ainda mais clara sua pele. A morte para os românticos. Uma figura feminina alva, coberta de preto. Fatal mas atraente. Neste momento entendia o apego daqueles pela morte.
Sem uma palavra aproximou-se dela. Olhou-a nos olhos. Lindos olhos. Eles transbordavam a vida daquele lugar. A vida dele. Perderia-se por vontade própria naquele lânguido olhar. Ela continuava deitada, indiferente. Só seus olhos o fitavam. O silêncio da sala era quebrado pela fala destes olhares.
IV.
Entrou de cabeça baixa. Não queria olhar. Estranho, pensou. É o passado que esta a minha frente, indiferente ao futuro. O amigo acenou com a cabeça para ela e dirigiu-se para a cozinha. Ela retribuiu o aceno. Não havia se apegado tanto aquele amigo quanto ele. Vê-lo, porém, mexeu com ela.
Ele levantou timidamente os olhos. Viu-a em frente à janela. Os olhares se cruzaram. Não trocaram, no entanto, nenhuma palavra. O silêncio cobriu a sala com seu manto.
V.
No começo falavam o tempo inteiro. Ela mais que ele. E como ele gostava de ouvi-la falar por longos momentos. Ele, muitas vezes, não dizia uma só palavra. Deliciava-se com o som de sua voz. Doce. Lírica. Sorria enquanto ela falava.
Ela também gostava de ouvir a voz dele. Quando falava, era apaixonado. Perdia-se em suas considerações. Ela deixava-se levar por suas palavras.
Pouco a pouco, as palavras foram tornando-se obsoletas. Desnecessárias. Comunicavam-se com os olhos. Com o toque. Com carícias. Ambos perguntam-se agora quando seus olhares emudeceram.
VI.
Ele ligara para ela para marcar um encontro. Como sempre, ele telefonara e ela disse que iria. Ao desligar o telefone, porém, não sentia mais a excitação que possuía seu corpo sempre que ele ligava. Estava quase indiferente.
Há certo tempo as coisas já não eram mais as mesmas. As horas passadas no apartamento com ele não transcorriam apressadas como antes. Os silêncios substituíam as já escassas palavras. Os silêncios dominavam até o dialogo entre os corpos. Pareciam se tornar cada vez mais estranhos. Distantes.
Ela foi, contudo, ao apartamento. Chegou mais cedo. Aproximou-se do sofá, em frente à janela e olhou para fora. Pela primeira vez notou as folhas amarelas que caiam das árvores e forravam o chão do parque ao lado do prédio. Dirigiu-se até a escrivaninha próxima do sofá. Pegou papel e caneta. Olhou mais uma vez para o apartamento. Escreveu uma palavra, dobrou o papel e colocou-o sobre o sofá. Dirigiu-se novamente para a porta e saiu. Sem olhar para trás. Em silêncio.
VII.
Quando chegava ao prédio, pensou tê-la visto saindo. Apressada. Não tinha certeza. Entrou no prédio. Subiu correndo as escadas e abriu a porta do apartamento. A saudade apertava-lhe o peito. A sala estava vazia. O quarto também, bem como o banheiro e a cozinha. Ao invés dela estar esperando por ele deitada no sofá, vestindo o robe preto de seda, havia um pedaço de papel.
Ele sabia do que se tratava. Não queria era acreditar. Pegou o papel dobrado em suas mãos. Como não percebera os sinais antes? Desdobrou o papel. Só uma palavra estampava o fundo branco. Adeus. Lágrimas começaram a manchar sua face. Um choro contido. O desepero começava a dominá-lo. Por quê?
Amassou o papel com a pouca força que conseguira reunir. Lembrou de tê-la visto saindo do prédio. Agora sabia com certeza que era ela. O bilhete escapou por entre seus dedos juntamente com seu controle. Lançou-se em direção à porta, deixando-a aberta, e pelas escadas. Não via mais nada. Tombou no primeiro degrau. Adeus. Por quê? Rolou pelos degraus. Um estalo. Um osso quebrado. Dor. Por quê? Adeus. Silêncio.
VIII.
- Por quê? - perguntou-lhe em um tom quase inaudível. Foi a única coisa que veio a sua mente.
- O que foi?
- Por quê? - repetiu a pergunta, levantando os olhos para encará-la. Sentia-se pequeno diante dela. Sentia-se pressionado sobre sua bengala.
- Nem tudo que fazemos tem um motivo. - respondeu-lhe tranqüilamente. - Às vezes é só o silêncio.
E o silêncio cobriu a sala mais uma vez. Ela havia realmente mudado. Ele não. Ele sentou-se em uma cadeira próxima e não disse mais nada. Ela pegou seu casaco, passou por ele e saiu. Desta vez nem Adeus. Só silêncio.
IX.
A porta fechou-se. Mais uma vez ela fora embora. Ele pressionou a bengala por alguns instantes. Imóvel. Levantou-se. Caminhou em direção ao banheiro e postou-se diante do espelho. Olhou fixamente para seu rosto e fechou os olhos. Não vira nada. A angústia se fora com ela. Abriu os olhos e deixou o banheiro.
Sabia, porém, que nada mudaria de repente. O espectro dela ainda estava lá. Dormente na imensidão de seu inconsciente. Sabia que um dia ela voltaria. Sabia que teria de encará-la novamente. Não sabia quando. Não sabia onde. Não sabia se conseguiria fazê-lo. Sabia que ninguém foge da Memória.
Chamou o amigo com um gesto e saíram do apartamento.
Rendez - Vous
O Passado não nos deixa. Ele sempre volta para remoer as dores mais profundas da alma. Ele sempre volta para atormentar o Presente. Ele sempre volta para influir no Futuro. Este é o constante jogo do tempo, no qual o pior inimigo é a memória.
Nunca pensei que a veria novamente. Talvez até esperasse, inconscientemente, encontrá-la. Talvez até quisesse revê-la. Não sei. Ela estava linda, como sempre. Exuberante. O brilho de seus olhos era o mesmo. Podia sentir até mesmo o aroma de seu perfume. Ou talvez não. Talvez só a visão dela provocasse antigas sensações. Sensações estas que há algum tempo já estavam esquecidas. Esquecidas não. Adormecidas. Hibernantes. Esperando para serem despertas.
A sua presença chegou a apagar a daquele que a estava acompanhando. Mas não por muito tempo. Pior que revê-la era revê-la acompanhada. Eu me via a seu lado. Naquele instante amaldiçoei o seu escorte. Bem como havia amaldiçoado a ela. Pensei em me aproximar, em cumprimentá-la casualmente. Não. Estava além das minhas capacidades. Fiquei parado. Sentado. Imóvel. Observando.
Penso em todas as coisas que deixamos não feitas. Fatos não concretizados. Presos para sempre na impossibilidade. Irrealizados. Esquecidos? Não. Perdoados. Não esquecidos. A beleza é uma coisa horrível. E ela era bela. A mais bela. Única.
Foi então que ela olhou-me. Um olhar surpreso. Ela também lembrava. “Te amo”. Beijos. “Venha comigo”. “Impossível”. “Por quê?” Beijo. Por quê? Não sei.
Levantei-me. Cruzei o salão. Fui até ela. Desconsiderei o indivíduo sentado a seu lado. Olhei-a profundamente. Intensamente. Ela retornou o olhar.
-Tenho tido pesadelos contigo.
-Pesadelos?
-Não posso chamar de sonhos.
Silêncio.
-Te ter em minha mente e não poder te ter em meus braços...
Silêncio.
-Pesadelo.
Silêncio. O olhar é firme.
-Por quê?
-Por quê?
-É. Aquela noite. Por quê?
-Não sei.
-Tu não me amava.
-Eu nunca disse que não.- O olhar agora é terno.
-Também nunca disse que sim.
-Tu que não escutava.- Uma lágrima escorre pelo canto do olho.
Um beijo.
Não. Permaneci sentado. Retornei o olhar. Cumprimentando. Como a um estranho. Covardia? Medo? Talvez. Não sei ao certo. Sei de uma coisa. Nós agora vivemos em um tempo que não pode acontecer. Porque já passou. O futuro do pretérito. Um futuro que nunca será. Um tempo que vive de arrependimentos e lamentos. Mas que não nos deixa.
Nunca saberemos. Talvez seja melhor assim. Talvez não. Não sei.