I.
- Espera. - exclamou, segurando o amigo pelo braço.
- Do que tens medo?
Não soube responder no exato instante em que a pergunta lhe foi formulada. Olhava fixamente para aquela porta fechada a sua frente. Prosseguir ou não? Seria difícil para ele olhar na cara do passado. Justamente este passado que ele lutara para esquecer. Luta em vão. Perdida. Era assim que se sentia. Derrotado.
- Anda. Vamos entrar.
- Só mais um pouco, por favor.
Apoiou-se na bengala. A bengala. Seu único sustento. Seu único apoio. Sem ela dificilmente se manteria em pé. E por causa dela desabou, derrotado, frente a seu passado. Contradições da existência, pensou. A vida é uma contradição. A perna manca lhe doía.
- Estas com medo de que?
Conhecia-o bem, este amigo. Sabia de tudo. Até de seu medo. Era seu único amigo.
- De pé, diante de um espelho, digo a mim mesmo, aterrorizado: quero ver nesse espelho com o que pareço quando meus olhos estão fechados.
- Que queres dizer?
- É Richter.
Silenciou novamente ao erguer os olhos para a porta. O peso da memória fazia-o apertar a bengala. O amigo abriu a porta. Não havia dado importância ao que tinha dito.
- Tenho medo de como ela vai olhar-me...
II.
Do canto da sala onde se encontrava, sentado ao velho sofá, podia ver a cidade pela janela. Levantou-se, aproximou-se da janela e olhou para fora. Quantas vezes repetira aquela ação. Levantar-se, caminhar até a janela, olhar a cidade, as ruas, os andarilhos. O ato era o mesmo, a cidade era a mesma, até o sofá era o mesmo. Ela, porém, não era.
Desviou sua atenção da paisagem ao ouvir passos perto da porta. Seriam eles? Já era hora. Quase não acreditou ao atender o telefonema daquele velho amigo. Aquele amigo, o único elo remanescente entre eles.
- Como está ele?
- Quer ver-te. Seria possível?
Era possível. Ela estava ali, a espera dele, como tantas outras vezes havia estado.
Só agora concordou em encontrá-lo. Só agora podia dizer que o ato era o mesmo, a cidade era a mesma, até o sofá era o mesmo, mas ela não era. Agora já sentia que até o local era diferente. Meras paredes de concreto, frias, inanimadas, mortas, de um branco pálido. A vida daquele apartamento se fora com ela.
Apesar desta aparente segurança, perguntou-se, ao ouvir os passos, se seria capaz de olhá-lo nos olhos novamente. Tanto tempo levou para enterrar os fantasmas, que se perguntava se eles não seriam exumados no momento em que ele entrasse por aquela porta. Respirou fundo. Afinal, o passado não lhe doía mais no peito como antigamente. Já há algum tempo dormia em paz.
O que será que ele queria, depois de tanto tempo? O amigo não havia lhe dito. Apenas marcaram o quando, sendo o onde já sabido por ambos.
Virou-se para a porta ao ouvir o som da fechadura se abrindo.
III.
Abrira a porta como fazia sempre. Entrou e tirou o casaco. Deixou-o cair no chão. Pouco se importava com o casaco. Lá estava ela. A sua espera. Deitada no sofá. Somente aquele robe preto de seda cobria-lhe o corpo. Ela ficava linda de preto. A cor tornava ainda mais clara sua pele. A morte para os românticos. Uma figura feminina alva, coberta de preto. Fatal mas atraente. Neste momento entendia o apego daqueles pela morte.
Sem uma palavra aproximou-se dela. Olhou-a nos olhos. Lindos olhos. Eles transbordavam a vida daquele lugar. A vida dele. Perderia-se por vontade própria naquele lânguido olhar. Ela continuava deitada, indiferente. Só seus olhos o fitavam. O silêncio da sala era quebrado pela fala destes olhares.
IV.
Entrou de cabeça baixa. Não queria olhar. Estranho, pensou. É o passado que esta a minha frente, indiferente ao futuro. O amigo acenou com a cabeça para ela e dirigiu-se para a cozinha. Ela retribuiu o aceno. Não havia se apegado tanto aquele amigo quanto ele. Vê-lo, porém, mexeu com ela.
Ele levantou timidamente os olhos. Viu-a em frente à janela. Os olhares se cruzaram. Não trocaram, no entanto, nenhuma palavra. O silêncio cobriu a sala com seu manto.
V.
No começo falavam o tempo inteiro. Ela mais que ele. E como ele gostava de ouvi-la falar por longos momentos. Ele, muitas vezes, não dizia uma só palavra. Deliciava-se com o som de sua voz. Doce. Lírica. Sorria enquanto ela falava.
Ela também gostava de ouvir a voz dele. Quando falava, era apaixonado. Perdia-se em suas considerações. Ela deixava-se levar por suas palavras.
Pouco a pouco, as palavras foram tornando-se obsoletas. Desnecessárias. Comunicavam-se com os olhos. Com o toque. Com carícias. Ambos perguntam-se agora quando seus olhares emudeceram.
VI.
Ele ligara para ela para marcar um encontro. Como sempre, ele telefonara e ela disse que iria. Ao desligar o telefone, porém, não sentia mais a excitação que possuía seu corpo sempre que ele ligava. Estava quase indiferente.
Há certo tempo as coisas já não eram mais as mesmas. As horas passadas no apartamento com ele não transcorriam apressadas como antes. Os silêncios substituíam as já escassas palavras. Os silêncios dominavam até o dialogo entre os corpos. Pareciam se tornar cada vez mais estranhos. Distantes.
Ela foi, contudo, ao apartamento. Chegou mais cedo. Aproximou-se do sofá, em frente à janela e olhou para fora. Pela primeira vez notou as folhas amarelas que caiam das árvores e forravam o chão do parque ao lado do prédio. Dirigiu-se até a escrivaninha próxima do sofá. Pegou papel e caneta. Olhou mais uma vez para o apartamento. Escreveu uma palavra, dobrou o papel e colocou-o sobre o sofá. Dirigiu-se novamente para a porta e saiu. Sem olhar para trás. Em silêncio.
VII.
Quando chegava ao prédio, pensou tê-la visto saindo. Apressada. Não tinha certeza. Entrou no prédio. Subiu correndo as escadas e abriu a porta do apartamento. A saudade apertava-lhe o peito. A sala estava vazia. O quarto também, bem como o banheiro e a cozinha. Ao invés dela estar esperando por ele deitada no sofá, vestindo o robe preto de seda, havia um pedaço de papel.
Ele sabia do que se tratava. Não queria era acreditar. Pegou o papel dobrado em suas mãos. Como não percebera os sinais antes? Desdobrou o papel. Só uma palavra estampava o fundo branco. Adeus. Lágrimas começaram a manchar sua face. Um choro contido. O desepero começava a dominá-lo. Por quê?
Amassou o papel com a pouca força que conseguira reunir. Lembrou de tê-la visto saindo do prédio. Agora sabia com certeza que era ela. O bilhete escapou por entre seus dedos juntamente com seu controle. Lançou-se em direção à porta, deixando-a aberta, e pelas escadas. Não via mais nada. Tombou no primeiro degrau. Adeus. Por quê? Rolou pelos degraus. Um estalo. Um osso quebrado. Dor. Por quê? Adeus. Silêncio.
VIII.
- Por quê? - perguntou-lhe em um tom quase inaudível. Foi a única coisa que veio a sua mente.
- O que foi?
- Por quê? - repetiu a pergunta, levantando os olhos para encará-la. Sentia-se pequeno diante dela. Sentia-se pressionado sobre sua bengala.
- Nem tudo que fazemos tem um motivo. - respondeu-lhe tranqüilamente. - Às vezes é só o silêncio.
E o silêncio cobriu a sala mais uma vez. Ela havia realmente mudado. Ele não. Ele sentou-se em uma cadeira próxima e não disse mais nada. Ela pegou seu casaco, passou por ele e saiu. Desta vez nem Adeus. Só silêncio.
IX.
A porta fechou-se. Mais uma vez ela fora embora. Ele pressionou a bengala por alguns instantes. Imóvel. Levantou-se. Caminhou em direção ao banheiro e postou-se diante do espelho. Olhou fixamente para seu rosto e fechou os olhos. Não vira nada. A angústia se fora com ela. Abriu os olhos e deixou o banheiro.
Sabia, porém, que nada mudaria de repente. O espectro dela ainda estava lá. Dormente na imensidão de seu inconsciente. Sabia que um dia ela voltaria. Sabia que teria de encará-la novamente. Não sabia quando. Não sabia onde. Não sabia se conseguiria fazê-lo. Sabia que ninguém foge da Memória.
Chamou o amigo com um gesto e saíram do apartamento.