lost thoughts

idéias perdidas em algum canto...

Tuesday, December 06, 2005

Ecos

I.

NA SALA. Sentados um de frente para o outro.

ELA: Ainda ouço. Ele continua falando. Até quando continuarei ouvindo? Até quando ele continuará falando?

ELE: Ela ainda escuta. Será que presta atenção? Será que o que falo ainda faz algum sentido? Para ela? Para mim?

ELA: Ele sempre falou mais que eu. Mas será que algum dia me disse alguma coisa? Ou será que meus silêncios foram mais expressivos?

ELE: Se eu calar, o que restará? Apenas seus silêncios. O peso do silêncio. Muito maior que o de minhas palavras.

ELA: Nunca soube como dizer. O que falar. Sempre escutei. A voz dele. As palavras dele. E só. Os únicos sons que vem dele. Se ele calar, o que restará?

A chaleira chia na cozinha.

II.

NA COZINHA. Ela em pé, com a chaleira na mão, prepara o café. Ele sentado à mesa.

ELE: Nunca falou muito. Tudo fala por ela. E esses são seus sons. O chiar da chaleira no fogo. A água caindo sobre o pó. Sua respiração, tranqüila. Será que ela também me escuta assim? O beijo, os lábios úmidos e quentes. A pele que se arrepia ao toque.

ELA: Meu olhar fala. Meu corpo expressa. Será que ele ainda entende? Seu olhar alguma vez compreendeu o meu? E seu corpo? Alguma vez ouviu? Quando me toca, eu grito. E ele silencia.


III.

NO QUARTO. Ambos na cama.

ELA: Será que sempre nos entenderemos assim? Longe de todos os outros. Longe de tudo. Perdidos em nós mesmos. Será?

ELE: Agora é o momento em que silencio. Em que me abandono em sua polifonia. É o momento em que escuto, só, à sinfonia dela. É quando, penso, realmente entendemos um ao outro.



IV.

NA BANHEIRA. Ambos dentro d´água, de costas um para o outro.

ELE: Quando criança mergulhava a cabeça na água e gritava. Minha voz distorcida. Dizia muitas coisas. Frases enormes. Mas o que escutava eram coisas completamente diversas do que dizia. E ela? Escuta o que digo, ou o som que se propaga distorcido na água?

ELA: Quando criança mergulhava a cabeça na água. Segurava a respiração para não soltar nem uma bolhinha. O silêncio me deixava a sós comigo mesma. Às vezes é assim que me sinto. Submersa no silêncio, prendendo a respiração. Mas ele está ao meu lado.



V.

NA SALA DE JANTAR, á mesa. Eles comem.

ELA: Como por necessidade. Mas as refeições se tornam um hábito. Amo por necessidade. Será que um dia o farei por hábito?

ELE: Não gosto de ervilhas. Desde pequeno nunca gostei. Sempre me disseram que faziam bem para a saúde. Então comia. Quieto. Sempre dei muita importância ao que os outros me diziam. Será que os outros dão tal valor ao que digo?

ELA: Hábito. “Olá”. “Como vai?” “Tudo bem com você?” Falas decoradas e automáticas. O pouco que falo também falo por hábito. O muito que digo nem todos escutam. Para ele chega a ser mais que um hábito. Falar é um vício.

ELE: Tento calar. Mas o silêncio me desmancha. Deixa marcas como gotas corrosivas. No silêncio estou só. Abandonado até por mim mesmo. E a solidão me destrói.


VI.

NA CAMA. Deitados lado a lado.

ELA: Enfim estamos sós. Estou só.

ELE: Odeio ficar só. Sozinho, olhando para o teto. Para o vazio. Para o nada. Estou só.

ELA: Estou só. Estou bem. Por que fazemos tanta questão de estarmos com alguém?

ELE: Só. Não consigo. Preciso estar com alguém. Por que isso?

ELA: Sempre cercados de outros, de outras, de muitos. Sempre acompanhados. Por que, se somos sós?

ELE: Por que ficamos sós se podemos estar sempre cercados, ocupados, atarefados?

ELA: Nesta hora estou só. Agora. E penso o porquê?

ELE: Porque precisamos de ecos. É tudo o que queremos.

ELA: Ecos. Ecos de nós mesmos.

Felicidade

- Você é feliz?
A pergunta soava descabida. A chuva caia forte e fria. Fria. Assim como o cano da arma que lhe pressionava a nuca. Era incomoda aquela pressão. Porém mais incomoda era a chuva. A roupa estava colada em seu corpo. Com certeza ficaria gripado. Gripado? Provavelmente nunca ficaria gripado novamente.
* * *
Após desligar o telefone fora para o banho. Ela havia concordado em vê-lo mais uma vez. Talvez voltassem a se entender. Talvez não. A discussão tinha sido séria. Não queria vê-lo nunca mais. Nem pintado de ouro. Mesmo assim resolveu ligar. No fundo não podia viver sem ela. Estava decidido a acertar as coisas. Começar novamente. Ao menos tentar.
Tomou um longo banho. A água, então, era quente. Agradável. Lavava-se para vê-la. Limpo de seus pecados. Vestiu-se com uma roupa elegante mas casual. Sabia que ela gostava daquela blusa. Ela tinha lhe dado em um aniversário. Sentia-se bonito. Confiante. Hoje iria compensar seus erros. Estava ansioso também. Ela parecia disposta a conversar. Mas qual seria sua reação? Ele permanecia com a dúvida.
Entrou no carro. Não ligou o rádio. Talvez até o tivesse ligado. Contudo, a ansiedade não o permitia. Saiu da garagem e tomou seu rumo. O rumo da felicidade? Era o que ele esperava. O sinal ficou vermelho. Ele parou. Seus pensamentos foram subitamente interrompidos. Uma nova sensação o dominou. Dor. Havia sido atingido na cabeça. Um pouco acima do olho esquerdo. Com muita força.
Por entre o olho inchado e o sangue viu a mão que o empurrava para o lado. O homem entrou no carro e partiu. Ela já o avisara para andar com a janela fechada. Não a escutara. Levantou a cabeça. Mais uma vez foi golpeado. Porém com mais força. Apagou. Ficou perdido em memórias e devaneios.
Acordou. Começara a chover. Água e sangue escorriam para sua boca. Estava deitado no chão. Não sabia onde. Sentia um peso sobre suas costas que o impediam de se mover. Sentia também uma pressão fria em sua nuca. O homem estava sobre ele com uma arma.
- Responde! Você é feliz?
Se era feliz? A pergunta era mesmo descabida.
Não respondeu. Ficou em silêncio. Qual seria a medida da felicidade? Será que se arrependeria de algo? Será que era feliz? Seria feliz? Um estouro. A nuca esquentou repentinamente. E ele não sentiu mais nada.
* * *
Ela esperou-o por uma hora. Por uma hora ficou sentada à janela. Observava a chuva que começara a cair. Pensava no que diria a ele. Uma hora. Ela levantou-se e foi embora. Teria sido feliz com ele? Não sabia. Jamais saberia.