lost thoughts

idéias perdidas em algum canto...

Friday, April 07, 2006

I.

A poça transbordou. A água escorreu pelo leve desnível do lado esquerdo. O pequeno canal que se formou desaguou no meu pé esquerdo. O primeiro evento extraordinário em tempos. Não. Minto. O primeiro evento extraordinário foram as treze gotas a mais. Mil trezentos e oitenta e cinco gotas. Deve estar chovendo lá fora. Aqui chove todos os dias. Todos os dias exatamente mil trezentos e setenta e duas gotas sobre a minha poça. Se a poça fosse mais profunda daria um jeito de conseguir um peixe. Realmente extraordinário. Treze gotas a mais. Deve star chovendo lá fora. Aqui chove todos os dias. Mil trezentos e setenta e duas gotas.


II.

Se um dia me pedirem posso construir um canto igual a esse. Tempos olhando para esse canto. Sei como cada pedra é encaixada na outra. Poderia montar e desmontar o canto. Abrir e fechar a parede. Já fiz isso diversas vezes. Mas só na minha cabeça. Se um dia me pedirem posso construir um igual. Se um dia me pedirem. Senão só na minha cabeça.

III.

Meu céu não tem estrelas. Não tem nuvens. Sol ou lua. Dia ou noite. Apenas intervalos. Quando fecho os olhos e quando os abro novamente. O mesmo céu. Sem estrelas.

IV.

Hoje elas não apareceram. Agnes e Agatha. Não é a primeira vez que elas não aparecem. Mas confesso que me sinto mais só quando elas não vem. Confesso que fico esperando. Mesmo sabendo que as vezes elas não vão aparecer. Como hoje. A primeira vez que apareceram não nos entendemos. As via como invasoras. Até pensei em matá-las. Mas não. Deixei-as ficar e deixei-as ir embora. E elas voltaram. E voltaram. E a situação foi se amenizando. Começamos a nos entender. Hoje elas são minhas únicas companhias reais além do musgo nas paredes. Mas hoje não vieram. O dia foi mais longo. Agnes e Agatha. Não sei porque as chamei assim. Nomes femininos. Não sei distinguir o sexo das aranhas.



V.

Tentava manter a conta do tempo. Seguir o andar de dias e noites. Meses. Talvez anos. Mas é difícil quando se tem q fazer isso contando as horas mentalmente. Ou procurando resquícios de luz por alguma fresta. Agora eu determino o que é dia e o que é noite. Aleatoriamente.

VI.

Campos verdes. Uma brisa fresca sopra. Os pelos do meu corpo se arrepiam. Piso de pés descalços na grama macia e úmida. O sol é quente e seus raios penetram as nuvens cinzas que a pouco cessaram de chover. Ainda tenho a pele úmida. Respiro fundo. E o cheiro é podre. Mofo. É assim que acordo. É assim que me são roubados os campos verdes. O lugar para onde fujo quando fecho os olhos. Quando quase durmo. Perdido entre dias sem sol e noites sem lua. Voltado para o canto. Até a minha poça fede. E os pingos caem. Fecho os olhos. Mas os campos não voltam.

VII.

O tédio consome até meus pensamentos. Parados. Estáticos. Imóveis. Até meus pensamentos são cansados. Disseram uma vez que somos sempre livres nos pensamentos. Grande bobagem. Até minhas idéias são encarceradas. Presas. Limitadas pelas paredes de uma mente suprimida. Será dia lá fora? Ou até o tempo foi consumido pelo meu tédio? O um tempo foi.

VIII.

A necessidade desesperada do outro. Nunca pensei que fosse sentir de maneira tão intensa. Mas não há outro. Apenas outras paredes. Sempre as mesmas paredes. Intimas. Elas que devolvem o eco de minhas palavras suprindo-me um pouco dessa ânsia. Elas que me colocam frente a frente com minha própria repetição. Meu outro sou eu.


IX.

Hoje é meu aniversário. Assim como o foi ontem. E como o será daqui a uma semana. Ou daqui a uma semana. Os anos passam mais rápido assim. Tenho aqui minha própria órbita em torno de um sol único (imaginário). Posso acelerar ou retardar o tempo. E não é esse um grande poder. Grande poder. De nada adianta. Lá fora tudo continua como sempre foi. E aqui tudo continuará como sempre é. Pois tudo é sempre igual. Não importa se amanhã decido comemorar mais um ano em um dia. Grande poder. Se pudesse apenas acelerar o tempo em direção ao fim. Ou retrocede-lo até o começo de tudo. Não. Acelerando ou retrocedendo vivo em um permanente Agora. Sempre igual. Nem minhas ilusões me bastam mais. Esmagadas pela perene realidade desse Agora que insiste em ficar.